quarta-feira, dezembro 28, 2005

História(s)


Vista de San Michele, Anacapri, Itália

Além da Grande História, entendida como a história dos países, também me fascinam as pequenas histórias, querendo com isto referir-me às ideias das pessoas e às suas formas de vida. Uma das melhores maneiras de captar esse espírito é através da leitura de romances de época. Ao ler Eça, por exemplo, facilmente nos apercebemos de como as gentes do seu tempo viam o mundo; mais ainda, é possível verificar que algumas das coisas que então se diziam ainda hoje são comummente ouvidas tal como “no meu tempo é que era, esta juventude está perdida”, “antigamente é que era, agora ninguém quer trabalhar” ou tão só “antigamente é que era” (embora geralmente acompanhado por combinações múltiplas de desprezo pelos tempos correntes).

Vem tudo isto a propósito do livro que acabei de ler esta manhã. Escreve o autor que “cada martelito da máquina bate ao mesmo tempo no papel e no meu crânio, esmagando todos os pensamentos à medida que se aventuram a surgir-me no cérebro (…) Havia um largo caminho que levava o meu cérebro à minha caneta (…) Não é de admirar que se percam (os meus pensamentos) agora nesta labirinto americano de rodas e de engrenagens! Entre parêntesis, convirá advertir o leitor de que só tomo a responsabilidade do que escrevi com a minha própria mão e não o que elaborei com a colaboração da minha Corona Typewriter Company”. Esta passagem (página 313) despertou-me particular interesse porque diversos escritores contemporâneos repudiam os computadores ao mesmo tempo que se afirmam inseparáveis das suas máquinas de escrever. No meu entender, mais que romantismo, esta posição revela uma aversão à mudança semelhante à do autor, embora tecnologicamente mais avançada.

O livro que acabei de ler esta manhã chama-se “O livro de San Michele” e foi escrito por Axel Munthe num registo autobiográfico. Comprei-o por causa de uma viagem que fiz em Maio à sua casa de San Michele (em Anacapri, ilha de Capri, Itália) e revelou-se uma agradável surpresa. Ambientado na transição do século XIX para o século XX, o autor apresenta-nos uma Europa muito diferente da que conhecemos na actualidade. Uma Europa em que a situação geopolítica era muito distinta (os suecos eram imigrantes económicos em Paris!), onde a miséria era generalizada e onde proliferavam doenças hoje praticamente desaparecidas ou afastadas para lugares distantes: difteria, malária, cólera, escarlatina… Desde então a Europa (e o mundo) sofreu uma profunda mudança tecnológica, económica e social. A “pequena história” revela-nos um homem aberto (mas) que defendia simultaneamente posições retrógradas como a bondade da pena de morte e que afirmava com a maior das naturalidades que as mulheres são incapazes de fazer ciência! A revolução no mundo das ideias foi de, pelo menos, igual magnitude.

O livro está bastante bem escrito embora num registo um pouco antiquado (a tradução foi feita por Jaime Cortesão) e é extremamente interessante não só porque ajuda a contextualizar o mundo de hoje mas também porque relativiza um conjunto de situações que nos afectam. Afinal, Velhos do Restelo já existem há muito.

“O Livro de San Michele” é ainda o primeiro título da conhecidíssima “Colecção Dois Mundos” da Editora “Livros do Brasil”. O autor era médico pelo que me parece particularmente recomendado para esta classe profissional.