sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Teresa e Lena, liberalismo e moralidade

Este post já deveria ter sido escrito há alguns dias. No entanto, a seriedade que o tema me merece e a falta de tempo que tenho tido para o fazer, levaram a que só agora lhe possa pegar.

Para começar, deixemos algumas coisas bem claras:

1. Não sendo propriamente católico, acho importante deixar bem claro que toda a minha educação é de base católica (quer familiarmente, quer pela escola que frequentei);

2. Por ter esta formação, alguns dos valores que mais arreigados tenho em mim, são precisamente a solidariedade, o respeito pelo próximo e o amor aos meus semelhantes (começa aqui a perigosidade lexical... será que eu percebi mal quando me ensinaram e semelhantes significa não a espécie humana por inteiro, mas só alguns?!);

3. Ainda pelo mesmo motivo, aprendi que a relação com Deus é muito mais individual que colectiva e que não devemos julgar moralmente ninguém, nem como indivíduo, nem, muito menos, como membro de um suposto grupo homogéneo (like if there was such a thing...);

4. Apesar de ainda estar na introdução, já estou a sentir que me vai fugir a mão e que, provavelmente, vou acabar por ofender muita gente - as minhas desculpas por adiantado, mas há coisas que ou se dizem de forma crua e agressiva, ou caem em saco roto.

Feita a introdução, passemos à vaca-fria.

Eu tenho andado um pouco distraído e nem me apercebi que algures no final do mês passado, duas mulheres corajosas chamadas Teresa e Lena, tinham decidido tomar o seu destino em mãos e ir a uma Conservatória pedir a um Conservador que respeitasse a Constituição, ignorasse o Código Civil e as casasse!

Ao que parece, fartas de obstáculos e humilhações, quiseram dar o passo que lhes permitisse ser ambas mães da filha de Lena (em vez de uma ser mãe e a outra encarregada de educação), poderem ambas visitar a filha no Hospital se esta estiver doente e só puderem entrar familiares, poderem contrair um empréstimo em conjunto e por aí fora... Coisas que qualquer heterossexual dá por adquirido...

Além de ter os mesmos direitos, Teresa e Lena querem também ter os mesmos deveres que qualquer casal, ou seja, "formar uma sociedade familiar que integre todos os seus bens" e "celebrar um compromisso mútuo de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência".

No fundo, Teresa e Lena querem deixar de ser companheiras e passar a ser um casal, da mesma forma que muitos heterossexuais podem optar por viver toda a vida como companheiros ou como casais. E em vez de ficarem comodamente sentadas à espera que a sociedade mude, que os partidos lutem por elas, ou que morram sem que nada aconteça, decidiram levantar-se, meter-se no carro e provocar a mudança! Só por isso, já são exemplo para todos nós!

A minha distracção relativamente ao tema acabou no dia em que, por acaso do destino, sintonizei a TSF no momento em que decorria o Forum sobre o sucedido. E o panorama foi ainda mais assustador do que eu alguma vez imaginei... Comentários como "espero que os nossos governantes não façam uma lei tão... tão... porca!" foi do mais soft que por ali se ouviu... Depois havia também a repetição ignorante de coisas como "nã... não vamos agora estar a alterar a Constituição [nota JTF: que nem precisa de ser alterada... basta o Código Civil...] porque essas duas se querem casar..." ou "basta ler a imprensa dos países em que fizeram isso, para ver as aberrações que agora andam a acontecer... isso correu mal em todo o lado...".

Ora, que Portugal é um país de beat@s racistas e xenófob@s, eu já tinha alguma noção... o que me choca é que sejam também acrític@s e incoerentes!

Como disse na introdução, o respeito e o amor pelo próximo são valores fundamentais do catolicismo que eu ainda hoje guardo, independentemente do caminho que percorri desde os meus dias de aluno de um colégio religioso até ao presente. Creio que hoje é mais ou menos unânime dizer que a Inquisição e a carnificina decorrente das Cruzadas e de outros movimentos de conversão de «infiéis», foram opções erradas e, na maior parte dos casos, bárbaras e criminosas! Com isso aprendemos, ou deviamos ter aprendido, que a fé não se impõe e que a moral não é universal nem igual para todos!

O facto de vivermos num Estado de Direito Democrático, com o Estado bem separado (?) da Religião e onde tod@s são iguais ante a Constituição, tem que significar mais que mera retórica!

Um Estado como o que por aqui concebemos baseia-se na Diversidade (por oposição à homogeneidade e ao unanimismo) e na defesa de um conjunto de Valores consensualizados que definem a matriz em que nos movimentamos.

Ao contrário do que disseram a maior parte dos reaccionários que participaram no Forum, o facto de vivermos numa democracia não significa que a maioria impõe, manda e desmanda, mas sim que a maioria lidera com respeito pelas minorias. Ou seja, não se trata de uma ditadura de 50 mais 1, mas sim de um sistema em que os 50 menos 1 são respeitados e ouvidos na definição das soluções.

É por isto que a «Democracia é o pior de todos os sistemas com excepção de todos os outros».

É que não se trata de proibir os heterossexuais de casar, nem de obrigar os homossexuais a fazê-lo! Trata-se apenas de garantir a universalidade e a igualdade na aplicação dos nossos deveres e dos nossos direitos.

Artigo 12º
(Princípio da universalidade)
1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.

2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.


Artigo 13º
(Princípio da igualdade)

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Nada disto vai acabar com a discriminação de facto, aquela que homossexuais e lésbicas sentem e sentirão todos os dias na rua, em casa, no trabalho, etc., mas, pelo menos, pode acabar com a discriminação praticada pelo Estado no relacionamento com os cidadãos que o constituem!

É que, convenhamos, se passamos a discussão para o plano da moral vigente, basta recordar que a tradição até muito recentemente se baseou bastante nos defeitos privados, virtudes públicas: o bom chefe de família batia na mulher e nos filhos e ia às putas às quintas à noite, sem ser discriminado e humilhado por isso, desde que conseguisse manter alguma discrição! É esta a fachada que queremos manter?

As leis existem e são para todos! Se o heterossexual quer casar, casa; se não quer não casa! O homossexual e a lésbica não (a não ser que casem um com o outro, dirão logo os reaccionários mais espirituosos...)! São situações diferentes? São instituições diferentes? São o que quiserem! Mas que não podem ser fiscalmente diferentes, nem podem ser motivo para discriminação no relacionamento com o Estado (hospitais, escolas, etc.), isso (digo eu...) não podem!

Deixemo-nos pois de falsos moralismos e entendamos a realidade como ela é: o casamento religioso tem as regras que tem e que não estão a ser contestadas; o casamento civil enquanto relação contratual entre duas pessoas a quem são conferidos direitos e deveres por o celebrarem, deve existir em conformidade com a Lei Geral. Pelo menos é o que o meu lado liberal me sussurra ao ouvido...

P.S.: Aqui e aqui estão os blogs do Luis Grave Rodrigues, o advogado que apoia a Teresa e a Lena. Além do acompanhamento do tema, pode-se ler o recurso interposto no Tribunal Cível de Lisboa.

P.S.2: Alterei o título, porque não gostava dele... continuo sem gostar muito, aliás, mas foi o melhorzinho que me ocorreu... Além disso, deixo aqui mais uns links de bons sítios para acompanhar a evolução da coisa: Igualdade no Casamento, ILGA, Os Tempos que Correm e o Renas e Veados.