quarta-feira, março 02, 2005

Ainda sobre o Estado

Nos tempos que correm não há frases mais repetidas que aquelas do género "o Estado é ineficiente", "há que reduzir o peso do Estado", etc. Bom... pensando melhor há uma mais repetida, que é aquela do "eles falam, falam...", mas é a única!

Normalmente, na alma de quem repete estas coisas, o culpado pelo estado do Estado está identificado: o funcionário! Ser por natureza incompetente, preguiçoso, mal intencionado, etc.

A mim, esta explicação não me convence... Aliás, como não me convence esta história do "menos Estado" dita por quem não apresenta alternativas a ele e que não pensou quais são as funções que o nosso Estado deve desempenhar!

Como toda a gente sabe, também todas as empresas privadas têm o seu contingente de incompetentes, preguiçosos, bloqueadores de iniciativas e, muito importante, desmotivados! Normalmente, é neste último sub-grupo, o dos desmotivados, que encontramos a maior concentração daqueles que exclamam "também eu já fui jovem e tive sonhos"!

Na minha modesta opinião, aquilo a que chamam Estado (que na realidade é o sector público e administrativo, porque Estado somos todos nós...), do que enferma é de um grave problema ao nível dos processos. Senão vejamos:

a) Os diplomas universitários: quem já concluiu uma licenciatura numa universidade pública sabe que não se safa de esperar 2 a 3 anos pelo diploma... E porquê? Porque o reitor é preguiçoso? Ou porque o diploma, na forma como ainda existe hoje, foi concebido há dezenas?/centenas? de anos e pensado como um documento pomposo e personalizado, assinado à mão pela autoridade máxima da instituição que o confere? Será que nos dias que correm este documento as is faz algum sentido? É lógico que numa altura em que se diplomam dezenas de milhares de alunos no mesmo ano, na mesma universidade, faz sentido pôr alguém (e logo o reitor!) a assinar à mão estes papéis?...

b) As escrituras: quem comprou casa sabe que um dos maiores problemas que há para enfrentar nesse processo é a marcação da escritura! E que a escritura é sempre marcada porque o gestor de conta do banco, conhece alguém, que conhece não sei quem e por isso conseguiu meia horinha, na sexta de manhã «mas tem que ser lá no banco, senão temos que ir para a fila...». Depois chegamos lá, esperamos meia hora (ou mais) pelo funcionário que ficou preso no trânsito e metem-nos numa salinha onde o funcionário, antes de as partes assinarem a escritura a lê em voz alta! Num país onde já ninguém diz poesia, temos funcionários a declamar contratos! O que é que se conseguiu com isto? Perdas de tempo em deslocações e num procedimento arcaico que é a leitura em voz alta do contrato! É o funcionário que é incompetente? Ou são as instalações das conservatórias e notários que são desadequadas e os procedimentos que são parvos? Não bastaria passar pela conservatória ou notário, assinar os documentos e, caso uma das partes fosse analfabeta poder haver um pedido de leitura em voz alta do documento? Em quanto aumentaria a produtividade se assim fosse?...

c) As certidões: hoje para obter a maioria das certidões, temos que ir à conservatória, esperar horas para entregar um requerimento e voltar alguns dias depois para, depois de esperarmos mais algumas horas, levarmos a certidão assinada pelo conservador. Isto é porquê? É porque o conservador é preguiçoso e está-se a coçar? Ou é porque o procedimento não faz sentido? O conservador, autoridade máxima da conservatória onde se encontra destacado, não deveria, como qualquer gestor, estar liberto para se preocupar com a performance da conservatória que dirige e com os empregados que coordena? Numa época em que temos meios informáticos à disposição que permitem a tramitação imediata destes documentos, presencialmente ou por internet (imediatamente em formato digital, ou em poucos dias se fossem em papel - o tempo de virem pelo correio), fará algum sentido que boa parte do tempo do conservador seja ocupado a assinar papel? Alguém acredita que só o conservador pode garantir a autenticidade do documento? Ou que ele vai sequer conferir que o documento está conforme?...

E como estes exemplos existem muitos mais! Basta pensar um bocadinho nas experiências que vamos tendo... Se é verdade que nos podemos cruzar com altos imprestáveis nestes serviços, também é verdade que na maior parte dos casos é difícil imputar-lhes a culpa, porque a máquina burocrática montada, com processos centenários, torna impossível a obtenção de performances minimamente aceitáveis (embora possam ser melhores, nos moldes actuais dificilmente serão aceitáveis).

Assim, em minha opinião, o que está em causa não é o modelo social europeu, em que o Estado tem um papel fulcral a desempenhar, mas sim o modelo weberiano de burocracia, que aliás começou por ser um modelo de organização social com êxito e hoje, com a complexificação dos modelos de organização e produção é apenas uma palavra, com todos os significados pejorativos que conhecemos.

A prioridade é portanto a reformulação profunda dos processos no sector público e administrativo. Esta reformulação não exige alterações à Constituição, nem lutas contra a natureza humana, nem nada do género. Exige apenas vontade política e sentido prático das coisas.

Existirá?